Seja glóbulo branco, seja herói
Nos meus tempos de colégio, aprendi que o corpo humano está exposto a milhões de germes e microrganismos perigosos. Só não adoecemos o tempo todo porque contamos com os glóbulos brancos. Essas células são a linha de frente do nosso sistema imunológico. Viajando pela corrente sanguínea, elas atacam e destroem substâncias prejudiciais ao corpo, preservando nossa saúde.
A sociedade não é tão diferente do organismo humano. Também enfrentamos vírus nefastos. São eles a fome, a pobreza, a desigualdade social, o ódio, o racismo, as fake news — patógenos que prejudicam o bom funcionamento do corpo social. Para combatê-los, precisamos de pessoas e entidades que cumpram a função dos glóbulos brancos. Sem elas, colocamos em risco a democracia, a economia, a educação, o meio ambiente — tudo aquilo que gera riqueza, material ou imaterial. Cedemos terreno às doenças sociais, como a desigualdade e a pobreza.
O planeta precisa como nunca de glóbulos brancos. Gente capaz de identificar que vírus estão adoecendo a sociedade e descobrir formas inteligentes de atacar essas mazelas. Heróis de carne e osso, que curem as doenças de seu tempo superando quaisquer dificuldades.
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Os glóbulos brancos sociais são, na verdade, de todas as cores. Lideranças negras como Martin Luther King, como Mandela, ou Cíntia Santana, da ONG Entre o Céu e a Favela, e Lisania Pereira, da ONG Mandaver, são glóbulos brancos. A paquistanesa Malala também. O mesmo vale para o ambientalista Ailton Krenak. Todos eles, guiados por seus valores e circunstâncias, escolheram ingressar na luta contra as doenças sociais. Os glóbulos brancos têm todas as cores e também todos os gêneros, etnias, classes, regiões, culturas.
Ninguém nasce glóbulo branco. É preciso escolher e assumir esse papel. É preciso entender que a tarefa de lutar por uma sociedade melhor não pode ser delegada. Essa briga é nossa.
Já passou da hora de o Brasil firmar um grande acordo social e, sem meias palavras, declarar guerra à pobreza. Só assim poderemos montar um enorme exército de glóbulos brancos para atacar o cerne da nossa doença social.
É preciso localizar e, principalmente, empoderar esses glóbulos brancos. Quem são os prefeitos e vereadores glóbulos brancos? Quem são os empresários glóbulos brancos, dispostos a colocar a mão no bolso para apoiar ações de combate à pobreza? Quem são os glóbulos brancos nas favelas? Quem são os cidadãos glóbulos brancos, que doam o que podem em plataformas virtuais de arrecadação para apoiar programas sociais? Quem são os voluntários glóbulos brancos, que cedem tempo, conhecimento e know-how em ações solidárias?
Essas pessoas existem aos montes, espalhadas pelo país. Cabe ao poder público organizar e concentrar esse gigantesco poder transformador na única guerra que realmente importa: a guerra contra a pobreza sistêmica, hereditária, doença grave que rouba o futuro de milhões de brasileiros.
Não há espaço para neutralidade nessa luta. Vamos atualizar o poema-bandeira de Hélio Oiticica: “Seja glóbulo branco, seja herói”.
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Coluna publicada no Jornal O Globo em 08/06