Sem saudade da maloca
Se o senhor não tá lembrado, a demolição de malocas traz a marca da injustiça social. Adoniran Barbosa captou toda a tragédia da situação ao contar o caso de três amigos que, impotentes, apenas apreciavam a face mais cruel da especulação imobiliária diante do desmonte do lugar onde viviam. “Que tristeza que nós sentia/ Cada tauba que caía doía no coração”.
Essa é uma cena que, num futuro que já aponta no horizonte, terá espaço apenas num Museu da Pobreza. Sim, porque a realidade identificada pela sensibilidade do cronista já está sendo transformada. Na favela Marte, em São José do Rio Preto (SP), muita “tauba” vai cair a partir do próximo mês – e os moradores, hoje cheios de esperança, estarão felizes.
Como assim? Bem, dá licença de contar.
Num trabalho inédito – feito de dentro para fora e de baixo para cima – uma rede de colaboradores deu um passo importante para mudar essa história. Lá, o projeto Favela 3D (Digna, Digital e Desenvolvida) entra em fase crucial: a reurbanização total do território. Até a metade do ano, as 240 famílias do local serão abrigadas em imóveis alugados, abrindo caminho para a demolição da favela e a construção de um novo bairro a partir do zero.
O projeto das novas moradias foi escolhido em parceria com os próprios moradores, de acordo com suas preferências e necessidades. Além da infraestrutura, a Marte reurbanizada contará com quadras, espaços de lazer, centros culturais, uma Praça da Cidadania e até um Museu da Pobreza, dedicado ao registro da transformação da favela. O caráter único do projeto já despertou o interesse de pesquisadores na USP e na Universidade de Fudan, em Xangai (China).
Conduzidas pela CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), as obras devem durar cerca de um ano e meio. O custo total do projeto será repartido entre o governo paulista (50%), a prefeitura de São José do Rio Preto (25%), responsável pelas obras de infraestrutura, e a Gerando Falcões (25%). As famílias, por sua vez, pagarão a fundo perdido prestações equivalentes a 20% de sua renda, independentemente do tamanho dessa renda, em troca da titularidade das casas.
Um projeto dessa envergadura só pôde decolar graças a um imenso trabalho de equipe nos bastidores. Contamos com as lideranças locais, como Benvindo Nery, presidente da Associação de Moradores, e Amanda Oliveira, CEO do Instituto As Valquírias. Envolveram-se também o ex-governador João Dória, o governador Rodrigo Garcia e o prefeito de São José do Rio Preto, Edinho Araújo. Mas centenas de outros profissionais se engajaram na empreitada, de arquitetos aos técnicos das Secretarias de Habitação estadual e municipal, que agilizaram o licenciamento das obras; das empresas parceiras aos juízes e promotores que facilitaram a regularização fundiária, possibilitando que os moradores tenham escritura de seus imóveis.
É a sinergia entre esses atores que viabiliza o sonho da Favela 3D. A revolução serve de modelo para iniciativas similares em todo o país. Marte é prova de que, quando coordenados, o poder público, a iniciativa privada e o terceiro setor podem encontrar saídas para a superação da pobreza estrutural.
É ali, seu moço, que vamos começar a construir um país mais próspero – e mais justo.
*Coluna publicada pelo Jornal O Globo em 24/05/2022